“Aprendi a apanhar”, diz noivo militar de atleta trans sobre preconceito c6u1o
Lucca Michelazzo, 24 anos, sofreu ataques online após formatura na Escola de Sargentos. "Como homem, não deixarei de defender a mulher que amo", diz 4o4y1y


Conheci a Thaynna por intermédio de um amigo em comum, quando estava me preparando para entrar nas Forças Armadas. Nossa paixão foi arrebatadora e logo começamos a namorar. Eu havia me relacionado antes tanto com mulheres cis — aquelas que se reconhecem em todos os aspectos com o gênero de nascença — quanto com mulheres trans, que nasceram com o órgão masculino, mas não se identificam com ele. Para mim não há diferença, o que importa é a pessoa. A Thaynna me completa em diversos aspectos. O preconceito, no entanto, existe e não é simples conviver com ele. Durante um tempo, não contei sobre o namoro para a minha família. No quartel, tentava ser discreto, mas nem sempre é possível guardar segredos.
Quando a pandemia começou, tomei conhecimento de que alguns colegas de farda sabiam que eu namorava uma mulher trans. Tinha acabado de ingressar na Escola de Sargentos das Armas, um o importante na concretização do meu sonho de crescer na carreira militar. O aumento de casos de Covid-19 nos obrigou a ficar internados no alojamento e a fofoca se alastrou. Um amigo falou que o pessoal estava comentando o assunto. Eu me afastei um pouco da turma, mas, mesmo assim, ouvia frases do tipo: “Você viu o Michelazzo namorando aquele traveco?”. A expressão preconceituosa se tornou uma constante em minha vida. O jeito foi ignorar as ofensas e colocar meu foco no treinamento. Deu resultado: mostrei serviço e ganhei confiança. Ter valor na caserna fez com que eu mesmo me valorizasse, ainda que vivendo um relacionamento amoroso pouco usual.
O primeiro ano do curso foi na minha cidade, Natal. A coisa ficou feia mesmo no segundo ano, quando tive de me mudar para Minas Gerais, onde fica a sede da ESA. Já entrei marcado. Alguns oficiais vieram pedir para eu tomar cuidado na convivência com os colegas: “Chega quieto, sem levantar bandeira”, me disseram. Toda tentativa de defender ideologia dentro do quartel é proibida e eles queriam evitar que eu desse respostas diretas, do tipo “namoro uma trans, sim, e você não tem nada a ver com isso”. Acatei os conselhos, mas a postura não aliviou a pressão. Qualquer errinho que eu cometia ganhava uma proporção muito grande. Todo mundo me zoava, era um massacre. Mas também tive apoio em alguns momentos. Um dia, começou a circular mais uma foto em que eu aparecia com a Thaynna, com a legenda: “O aluno da ESA chegando com o seu travequinho”. O capitão me chamou para me dar uma força. Alguns sargentos se solidarizaram. Luta melhor quem sabe apanhar e essa lição eu aprendi, a ponto de ser apontado como o aluno com melhor preparo psicológico.
Com a família também foi difícil. Esperei dois anos para contar para minha mãe. Ela não aceitou muito bem no começo, ficou preocupada com a impossibilidade de a gente ter filhos. Aos poucos, porém, o impacto inicial foi superado e hoje minha mãe ama a Thaynna. No dia da formatura, fiz questão da presença de meus parentes e da minha namorada. Nunca tive vergonha de aparecer com ela em público, pelo contrário, sempre fomos juntos à padaria, à academia. Estávamos comemorando na casa da minha avó quando tomamos conhecimento de uma mensagem de áudio que viralizou. Nela, um sargento mais antigo do que eu questionava com indignação: “Como é possível um traveco ir à formatura de um sargento? Botar o quepe na cabeça dele? Isso é um absurdo. Alguém tem de avisar que esses travecos não são bem-vindos!”. Prestei queixa na polícia por transfobia, preconceito e racismo, e espero que os autores sejam responsabilizados. Dessa vez, o ódio foi derrotado — recebemos apoio nas redes sociais de gente que nunca vi na vida. Como soldado, estarei sempre pronto a defender o Brasil. Como homem, não deixarei de defender a mulher que amo.
Lucca Michelazzo em depoimento dado a Caio Sartori
Publicado em VEJA de 9 de março de 2022, edição nº 2779