Digital Completo: Assine a partir de R$ 9,90
Imagem Blog

Conta-Gotas 4t4a6n

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Pequenos diálogos para desbravar grandes obras & ideias − e cuidar melhor de si e do mundo

O que é que a Romênia tem? Um verdadeiro monstro da literatura 3v436z

Cotado ao Prêmio Nobel, o romeno Mircea Cărtărescu é dono de uma obra singular e diluidora de fronteiras. Seu tradutor no Brasil explica essa mágica 2v6p3x

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 21 abr 2025, 19h46 - Publicado em 14 abr 2025, 17h00

Poucos escritores têm o poder de construir mundos e, ao mesmo tempo, destruir fronteiras. O romeno Mircea Cărtărescu é um deles. Quando penetramos em seu labirinto, povoado de gente comum, mas também de quimeras que desafiam a natureza tal qual a conhecemos, perdemos a noção de onde estamos – se é sonho ou realidade. E pouco importa: importa que somos tragados por seus livros e vamos parar em outra dimensão. 

Em Solenoide, seu último romance publicado no Brasil, andamos pelas avenidas de uma cidade, Bucareste, e pelas ruas da mente de um professor de periferia, o nosso guia-narrador. Através do espelho fluido entre fantasia e vida real, entramos numa espécie de universo invertido, em que o autor, que queria ser um grande poeta, é cancelado pelo rolo-compressor da crítica universitária, abortando uma carreira potencialmente gloriosa e descambando para a mediocridade (?) de alguém que terá de ganhar o pão dando aulas a crianças e sofrendo ataques de piolhos – é assim que começa a história, aliás.

Na obra trazida ao país pela Editora Mundaréu e traduzida por Fernando Klabin, podemos mirar o crepúsculo sanguíneo da capital romena de uma janela em um edifício cinzento, percorrer seus subterrâneos habitados por máquinas e criaturas estranhas (aos nossos olhos), conhecer um grupo de manifestantes que não aceitam a morte e, de cartaz em punho, bradam contra ela…

Eis uma cidade projetada em ruína e melancolia, na qual convivem funcionários públicos sob um regime autoritário e divindades ocultas nas teias de uma existência que desafia a compreensão.

Solenoide 6d26

solenoide-livro

Para quem acha que a Romênia, essa nação distante na Europa Oriental de língua latina, se resume a lar do conde Drácula, Cărtărescu (com esses acentos em consoantes tão esquisitos a quem fala português) expõe outro mundo, mais diverso, terno e vívido, mas também mais angustiante e obscuro – porque a terra que ele nos convida a visitar (e a se encantar) tem fundações literárias. 

Continua após a publicidade

Bata num liquidificador literário Kafka, Borges, H.P. Lovecraft e Max Blecher e talvez tenhamos algo próximo desse escritor já cotado a um Prêmio Nobel. Se em Nostalgia, seu primeiro romance publicado por aqui, habitamos em maior frequência o reino da infância, em Solenoide – perdão pela falta de didática jornalística, mas vale descobrir de que solenoides falamos -, avançamos do berço às raias da paternidade, perpetuando a obra e/ou a espécie.

A infância e sua legião de idílios e traumas, contudo, impregnam todo o território de Mircea Cărtărescu. Assim como as obsessões, que englobam de aracnídeos às profundezas do corpo humano. É assim que ele cruza a todo momento os limites, entre as vias oníricas e as supostamente reais, entre o humano e o monstruoso, e erige esse “antilivro” imperdível para quem gosta de livros.

A Bucareste reconstruída por (e no) seu cérebro, em linguagem e viagens enciclopédicas, não é um porto seguro, mas uma rota de fuga para as agonias da vida. E o que seria a arte senão esse escape (e paliativo) diante dos males do mundo? Essa revolta contra a dor, a doença e a morte. É aí que Solenoide dá sua injeção na alma. 

Se hoje podemos ler o catatau de quase 800 páginas em português, temos de agradecer à Mundaréu e a Fernando Klabin, o tradutor dessa obra fenomenal que torna a Romênia ponto inescapável no mapa da melhor literatura contemporânea.

Continua após a publicidade

Com a palavra, Fernando Klabin.

fernando-klabin
O tradutor do romeno, Fernando Klabin (Foto: Acervo pessoal/Reprodução)

Antes de falar de Mircea Cărtărescu… Como é que a Romênia e o romeno entraram em sua vida?

A Romênia, como praticamente todo o resto do mundo, entrou na minha vida pela coleção de selos que iniciei aos 7 anos de idade. Lembro que um dos selos comemorava uma eclipsa totala de soare [eclipse solar total, em romeno], revelando uma enigmática semelhança com o português. Foi muito mais tarde, em 1997, que o destino me soprou até Bucareste, onde morei por quase 20 anos, aprendendo e apreendendo a cultura e o idioma romenos, que se transformaram nolens volens em minha segunda pátria.

Qual foi sua reação ao descobrir Cărtărescu? 

Tenho preferência, em geral, por autores já mortos, e eram esses que eu vinha promovendo por conta própria até receber, pela primeira vez, uma encomenda: traduzir o romance Nostalgia, de Mircea Cărtărescu. Foi só aí que me aproximei desse peso-pesado da literatura contemporânea romena, inibido pelo sem-número de prêmios e loas com que já vinha sendo agraciado. Foi um desafio que aceitei com um temor respeitoso e alegria, e que finalmente me punha em pé de igualdade com meus colegas tradutores de literatura romena para outras línguas europeias, que fazia tempo já tinham Cărtărescu em seu currículo.

Continua após a publicidade

Como definiria a literatura desse “peso-pesado”?

Sem a competência de um crítico literário, eu diria que a obra toda de Cărtărescu poderia ser caracterizada como o relato da viagem, ininterrupta, do ser humano por dentro de si mesmo, durante a qual ele revela, sem pudor, seus medos, vulnerabilidades e dores mais profundas. Num estilo próprio, que ecoa diversos autores romenos, em especial Max Blecher, Cărtărescu tece um texto espesso, pleno de enigmas, divagações, reflexões, esperança, angústia, surpresa e perplexidade.

Os romances do autor me parecem, de certo modo, enciclopédicos, misturando poesia com jargões de algumas áreas do conhecimento (biologia, física…). Qual o grande desafio de traduzi-lo?

O caráter enciclopédico da sua trama, a meu ver, não a de pretexto para espelhar sua sensação, lúdica, de contínuo estranhamento diante da existência, e também imprimir um ruído inesperado e uma tonalidade original ao texto. Traduzir as agens de seus devaneios botânico, entomológico, mecânico, médico, arquitetônico, filosófico ou patológico é tarefa que não posso cumprir sem pesquisa e dicionário. Creio, porém, não seja esse o grande desafio, e sim tentar reproduzir, em português, o pulso da obra como um todo. Cada livro de Cărtărescu tem um certo batimento cardíaco que tresa, do início ao fim, todas as páginas.

Cărtărescu é, com alguma frequência, cotado ao Prêmio Nobel… O que diria que ele tem que outros autores não têm?

Todo autor tem características próprias que o tornam único, porém acredito que os grandes autores orbitem sempre em torno dos mesmos grandes temas da vida humana. Transformando Bucareste no axis mundi do seu mundo em que tempo, espaço, sonho e realidade são mascados e regurgitados em coordenadas inauditas, Cărtărescu não se distingue, mas antes se alinha à família dos grandes autores que pairam acima de crenças, nacionalidades e certezas.

Para quem quer desbravar a literatura romena, que outros autores desse país sugere ao leitor brasileiro?

A literatura em língua romena ultraa as atuais fronteiras da Romênia, que assim se apresentam desde o fim da II Guerra Mundial. Temos escritores de fala romena na república de Moldova, e uma plêiade vivendo na diáspora. Devido, ademais, ao caráter multicultural de seu povo, o país também conta com escritores que escrevem na própria língua minoritária, como Herta Müller e sua obra em alemão, premiada com o Nobel de Literatura em 2009.

Continua após a publicidade

Desbravar a literatura romena em português tem ainda sido tarefa limitada, dado o parco número de títulos hoje traduzidos no mercado brasileiro, apesar do heroico esforço de editoras como Mundaréu e Hedra. Sugiro que o leitor brasileiro comece pelas obras existentes em português, de nomes clássicos como Sebastian, Blecher e Minulescu, para em seguida ar, caso não esteja saciado, às excelentes traduções espanholas publicadas pela Impedimenta.

Compartilhe essa matéria via:

 

 

Publicidade

Matéria exclusiva para s. Faça seu

Este usuário não possui direito de o neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única digital

Digital Completo 6o121u

o ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
Apenas 9,90/mês*
OFERTA RELÂMPAGO

Revista em Casa + Digital Completo 2g6h51

Receba 4 revistas de Veja no mês, além de todos os benefícios do plano Digital Completo (cada revista sai a partir de R$ 7,48)
A partir de 29,90/mês

*o ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a R$ 9,90/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.