O cubismo médico: uma crítica construtiva à fragmentação de especialidades 2l6z4p
Os problemas do excesso de especialização na medicina e da falta do médico generalista de confiança para guiar o paciente 5z3a3u

O cubismo remete automaticamente àquelas pinturas estranhas de Picasso e seus contemporâneos que retratavam rostos de maneira fragmentada e os deixavam quase irreconhecíveis, como se os enxergassem ao mesmo tempo de vários pontos de vista diferentes. Essa fragmentação deformava o objeto inicial a ponto de transformá-lo em uma abstração. Trata-se de um tipo de arte que ainda provoca reações intensas e nem sempre positivas. Mas ela pode nos ajudar a refletir sobre o sistema de saúde atual.
Uma característica da medicina moderna é a profusão de especialistas. Existem ainda os subespecialistas, aqueles que, dentro de uma mesma especialidade, buscam se especializar em um nicho específico. Assim, há cardiologistas especializados em arritmias e outros que só tratam insuficiência cardíaca. De maneira ainda mais ilustrativa, há ortopedistas especializados em ombro e outros apenas em joelho.
A justificativa para tanta especialização é que o conhecimento médico atual é extenso demais para que um profissional possa dominá-lo. Isso é verdade, mas muitas pessoas têm saudade dos tempos em que havia um único médico como principal responsável pela sua saúde a quem podiam recorrer sempre que precisassem.
Tal médico detinha um conhecimento suficiente para ser bastante útil. Era ele que acompanhava a pessoa ao longo da vida, prestava o primeiro atendimento e resolvia a maior parte dos problemas, só encaminhando para os especialistas aqueles pacientes cuja doença era mais rara ou complicada.
Essa fragmentação excessiva do cuidado médico acaba distorcendo a visão do profissional em relação à pessoa que sofre. É como se cada especialista que atende o paciente o enxergasse sob a ótica daquele órgão específico, o qual acaba ganhando uma importância desproporcional e deformando a impressão clínica que o doente causa. Exatamente como faz o pintor cubista quando deforma um rosto e o recria fragmentado e desproporcional.
Para que a pessoa doente seja compreendida de maneira adequada em toda a sua plenitude, é preciso um olhar mais holístico que consiga enxergar o todo cuja importância está acima de cada uma de suas partes, o que costuma ser feito por aqueles profissionais com formação mais generalista, como médicos de família, clínicos gerais e geriatras.
É por isso que todos deveriam ter um médico generalista de confiança a quem pudessem recorrer em caso de necessidade, como acontece nos melhores sistemas de saúde. Já foi inclusive demonstrado em estudos que ser atendido pelo mesmo médico generalista ao longo dos anos está associado a uma maior longevidade e a mais qualidade de vida.
Assim, o cubismo médico se refere à fragmentação excessiva do cuidado clínico – no tempo e no espaço – de maneira que se perca a continuidade dos cuidados e se esqueça da visão do paciente como um todo. Essa visão distorcida e exagerada dos cubistas pode ser interessante nas telas, mas ela pode trazer riscos à saúde das pessoas na vida real.
* André Islabão é médico com especialização em Medicina Interna pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre e integrante do movimento da Slow Medicine Brasil. É coautor do livro Slow Medicine – Sem pressa para cuidar bem (MG Editores)