Carlos Ghosn vê chance de Nissan e Renault deixarem o Brasil
Ex-chefe da aliança entre as duas empresas afirma que a pandemia é desafiadora para o setor automotivo, mas que será pior para "os mais fracos"

Até o episódio de sua prisão no Japão e sua fuga para o Líbano, Carlos Ghosn nem de longe precisava se preocupar com sua reputação. Era um nome forte, senão o mais forte, da indústria automobilística mundial. Filho de imigrantes libaneses nascido em Porto Velho, Rondônia, o executivo está afastado do setor que o levou a fama. Apesar de concentrar todos seus esforços para provar sua inocência, ele ainda fala com propriedade da indústria que o deu notoriedade. Segundo Ghosn, por mais que a pandemia tenha tido efeito grande nos negócios, não há uma ruptura no setor automotivo. Porém, a crise tende a separar as empresas melhores istradas das outras. Até mesmo no Brasil, que o setor vem sofrendo mais e está com diversas fábricas fechadas, ele vê que a reação deve acontecer. Tudo isso terá um preço, no entanto: algumas empresas ficarão pelo caminho e as previsões de Ghosn afetam justamente as empresas que ele presidia e que o levaram à prisão. “Os mais fracos vão sair do Brasil, o que sempre acontece em grandes crises. Dentre os mais fracos, cito a Aliança (Nissan-Renault)”, disse, em entrevista a VEJA, a partir de Beirute, no Líbano. Ghosn e sua esposa, Carole, acabaram de lançar o livro Juntos, sempre pela editora Intrínseca.
Como o senhor enxerga os efeitos da Covid-19 no setor automotivo? As consequências diminuirão a importância do setor?
O impacto da Covid-19 sobre a indústria automotiva foi muito ruim, assim como em outras atividades. Agora, os resultados de 2020 mostraram que algumas montadoras foram bem. A Toyota e a Volkswagen, por exemplo, se saíram bem, enquanto outras companhias que já estavam fracas antes da crise, caíram bem mais, como a própria Aliança (Nissan-Renault). Acredito que a pandemia de Covid-19 vai conseguir fazer a distinção entre as empresas bem produtivas, organizadas, com visão de futuro e tecnologia, e o restante, que vai ficar bem para trás. Não acho que vai ter um impacto muito importante sobre a dimensão do mercado automobilístico, porque, pouco a pouco, a mobilidade deve retornar. Algumas pessoas podem se questionar se vão viajar, se hospedar em hotéis, mas certamente não vão deixar de usar os carros, que são uma mobilidade independente. O mercado vai voltar com força. Com a vacinação em massa, talvez em 2022, o setor, aos poucos, vai voltar à normalidade, mas a uma realidade transformada pela tecnologia. O segmento que mais resistiu à crise foi o de carros elétricos. Ou seja, a transformação tecnológica dos automóveis vai acelerar após a pandemia.
No caso do Brasil, nós tivemos a Ford deixando o país. A crise global de suprimentos e o recrudescimento da pandemia fez fábricas fecharem novamente. Vendo todo esse cenário, o senhor enxerga uma perda de relevância do Brasil no mercado automobilístico mundial?
Os atores fracos e pouco organizados do setor automobilístico vão sair na primeira oportunidade. Isso deve abrir mais espaço para montadoras mais fortes e melhores organizadas. Eu não estou preocupado com a recuperação da indústria, porque vai voltar. Mas, agora, o número de concorrentes certamente vai diminuir. Os mais fracos vão sair do Brasil, o que sempre acontece em grandes crises. Dentre os mais fracos, cito a Aliança (entre Nissan e Renault), porque para competir no Brasil é preciso ter uma montadora forte, com vontade de superar os ciclos específicos da economia local, e, se a empresa não tem essa vontade, vai ficar o tempo inteiro saindo e entrando do país, demitindo e contratando, parando e retornando. Esse stop and go é muito ruim para a marca e para os empregados.
O senhor ainda tem família morando no Brasil?
Sim. Tenho a minha mãe que mora no Rio de Janeiro, duas irmãs e outros familiares. Eles estão sofrendo porque não estavam acostumados com o fechamento total da economia, enquanto nós, que já vivemos no Líbano e em países europeus, já fomos confrontados com esse confinamento há muito tempo.
Como o senhor enxerga a condução da pandemia no Brasil?
Existem duas respostas possíveis. A primeira é de que a campanha de vacinação em massa está acontecendo. A segunda é de que aqueles ‘gestos de salvação’, como o uso de máscara e a adoção do distanciamento social entre as pessoas, foram muito eficientes em outros países. E agora o Brasil está impondo essas regras de uma forma mais rigorosa. Eu tenho a esperança de que a crise nacional, mesmo aguda neste momento, não deve demorar muito para ar. Pouco a pouco, a normalidade vai retornar, mas isso ainda pode demorar alguns meses. Esse tempo desagradável de confinamento é necessário para frear o contágio pela doença.
Como foi a relação com o governo brasileiro durante sua prisão no Japão e a ida para o Líbano?
Não tive nenhuma posição oficial do Brasil. Nós queríamos algum e do governo, mas obtivemos uma posição de neutralidade. Alguns setores queriam, sim, ajudar, mas outros optaram pela neutralidade em função do relacionamento do Brasil com o Japão. No fim das contas, eu entendo a posição brasileira porque eu não estava chefiando uma grande empresa do país. Eu não fui para o Japão como chefe da Petrobras, por exemplo. Se eu fosse presidente de uma grande empresa brasileira e acabasse preso no Japão, eu esperaria uma ajuda do governo. No meu caso específico, essa tarefa caberia ao governo francês, porque eu fui para o Japão como presidente da Renault, carregado de interesses ses, e com a missão de fortalecer as relações com a Aliança.
O senhor tem planos de voltar ao Brasil?
Sim, com certeza. O dia em que eu conseguir remover o Red Notice (alerta vermelho) da Interpol, que os japoneses pediram e eu estou realmente convertendo isso, vou visitar minha mãe, minhas irmãs, meus familiares. Eu vou voltar para o Brasil, porque tenho muitos amigos lá, afinal, é o meu país de nascimento. Sempre mantive contato muito estreito com o Brasil e essa certamente será uma das minhas primeiras viagens.
Outro lado
Tanto Nissan quanto Renault não comentam sobre o caso Carlos Ghosn, mas informaram que estão comprometidas a investir no Brasil pelos próximos anos. “Não temos planos de sair. Acabamos de lançar um produto novo, fabricado em Resende”, afirma a montadora japonesa que recentemente lançou uma nova versão do Kicks, fabricado no Rio de Janeiro.
A Renault afirma que lançará “cinco novidades até o primeiro semestre de 2022, incluindo a renovação de veículos da gama atual e um motor turbo, que será importado. Além disso, serão lançados dois veículos elétricos no mesmo período”. Segundo a empresa, houve um investimento recente de 1,1 bilhão de reais no país, e “reafirma a importância do mercado brasileiro para o Grupo Renault.”
Ambas empresas anunciaram fechamento temporário de fábricas, por causa do aumento de casos da Covid-19 no país. A planta da Renault em São José dos Pinhais (PR) interrompeu as atividades no dia 29 de março e planeja volta para 5 de abril. A Nissan parou a fábrica de Resende (RJ) e deu férias coletivas para seus funcionários entre 26 de março e 9 de abril.