A armadilha da caixa-preta: Bolsonaro mira o BNDES e atira no alvo errado
Presidente troca o dirigente do banco, criticado por não esclarecer os segredos dos empréstimos a Cuba e Venezuela – o problema, porém, não nasceu no banco

Joaquim Levy durou pouco mais de cinco meses à frente do BNDES. Solitário, trabalhador, rigoroso e, segundo os agora ex-colegas, muitas vezes desagradável, ele não conseguiu atender às metas que o levariam a cumprir suas principais missões: devolver 100 bilhões de reais ao Tesouro Nacional e abrir a “caixa-preta”, como o presidente Jair Bolsonaro gosta de chamar os contratos feitos durante os governos Lula e Dilma — sobretudo com países alinhados ao PT, como as ditaduras de Cuba e Venezuela.
É verdade que o economista, ministro da Fazenda de Dilma Rousseff, buscou entender os propósitos e as minúcias de todos os grandes acordos realizados nas gestões que o antecederam no banco. Seu perfeccionismo, no entanto, acabou por travar o BNDES, causando a ira do Planalto. “Eu já estou por aqui com o Levy”, disse o presidente Bolsonaro no sábado 15, em uma ameaça clara de demissão. O executivo preferiu encerrar a fritura pública por conta própria e, no dia seguinte, pediu seu desligamento do governo. Para ocupar seu lugar, foi escolhido Gustavo Montezano, indicado pelo secretário especial de Desestatização e Desinvestimento, Salim Mattar, de quem era o braço-direito. Mattar reclamava da lentidão de Levy em vender a participação do banco em empresas como Petrobras, Vale e JBS, e convenceu Bolsonaro a indicar seu pupilo na segunda-feira 17.
Levy falhou na primeira missão por temer o Tribunal de Contas da União, que poderia questioná-lo pela antecipação de recursos ao Tesouro. Como ex-titular da Fazenda da gestão Dilma, ele não queria se arriscar a uma acusação de estar realizando uma “pedalada”. A segunda missão, porém, Levy não tinha mesmo possibilidade de cumprir. A caixa-preta, um arquivo onde estariam guardadas informações que podem elucidar os motivos que levaram o BNDES a fechar contratos nebulosos com ditaduras não só da América Latina como também da África, de fato existe. Mas ela não está no banco: está na Câmara de Comércio Exterior, a Camex.

Foi durante reuniões do conselho diretor do órgão — presidido entre 2008 e 2010 por Miguel Jorge, então ministro do Desenvolvimento na era Lula, e com participação dos titulares da Fazenda, à época Guido Mantega, e do Planejamento, Paulo Bernardo — que se bateu o martelo quanto às condições superfavoráveis que Cuba, Venezuela, Moçambique e Angola conseguiram em empréstimos do banco. Entretanto, o conjunto das atas das reuniões da Camex — abrigada dentro do atual Ministério da Economia — está sob sigilo; elas só podem ser abertas por decisão judicial. Nem Maria Silvia Bastos Marques nem Paulo Rabello de Castro, que antecederam Levy na presidência do banco, tiveram o àqueles papéis. “Eu não estava no BNDES para auditar a Camex. Eu era um banqueiro, não um auditor”, afirma Rabello de Castro. Para deixar claro: Montezano tampouco poderá abrir a tal caixa-preta.
Uma ata da 72ª reunião do Conselho de Ministros da Camex, de maio de 2010, anexada a um inquérito do Ministério Público sobre o assunto, tornada pública em 2015, trata do contrato de empréstimo para que Cuba construísse o Porto de Mariel — alvo maior da fúria do presidente Bolsonaro. Na ocasião, a Camex deliberou sobre um financiamento de 176 milhões de dólares para a segunda etapa da construção do porto e definiu, por exemplo, uma taxa de juros entre 4,5% e 5% ao ano (foi usada a Libor, uma taxa de referência internacional, acrescida de 3,5% ao ano) — a título de comparação, a Selic, naquele momento, estava em 9,5%. Os prazos para pagamento também eram generosos. Na mesma ata, consta que o representante de um órgão coligado à Camex, e que conta com a participação do BNDES, o Comitê de Financiamento e Garantia das Exportações (Cofig), protestou contra as flagrantes irregularidades — ou, no eufemismo escolhido, as “excepcionalidades” — do contrato.
O Cofig é o órgão responsável por estruturar as garantias de cada empréstimo. Sua secretaria executiva advertiu que a proposta cubana era frágil, contudo quem decidia o que aceitar ou não era o comando da Camex: Miguel Jorge, Guido Mantega e Paulo Bernardo. No melhor estilo “La garantía soy yo”, aceitou-se que o contrato seria honrado por recebíveis gerados pela indústria cubana de tabaco. Cuba sustou o pagamento das parcelas em julho de 2018, e a garantia é impossível de ser executada — afinal, o devedor e o garantidor são a mesma figura, um governo totalitário.

A Camex faz, até hoje, todos os contratos de financiamento de exportações em coordenação com o BNDES. Todavia, os contratos firmados pelas gestões de Lula e Dilma não nasceram em demandas feitas ao banco, como é comum, e sim diretamente ao Poder Executivo. Por isso o contrato não garantiu o mínimo de segurança ao Tesouro Nacional. Hoje, o governo Bolsonaro está com problemas para conseguir cumprir a regra de ouro — que proíbe o Executivo de endividar-se para pagar despesas correntes. E é exatamente esse um dos motivos pelos quais o Ministério da Economia quer que o BNDES devolva, até o fim de 2019, 100 bilhões de reais — pouco mais de 1% do PIB — ao Tesouro.
Pelo menos nesse aspecto, o novo presidente do banco, Gustavo Montezano, poderá cumprir o que Levy não quis. Há disponível no caixa do BNDES entre 30 bilhões e 40 bilhões de reais, que podem ser transferidos já para o Tesouro Nacional. No entendimento da diretoria do banco, uma conversa com os ministros do TCU afastará qualquer risco jurídico. Com os 26 bilhões de reais entregues por Levy, o total devolvido pelo BNDES poderia chegar a 66 bilhões de reais ainda neste meio de ano. Outra preocupação de Levy, o balanço de pagamentos, é “perfumaria”, nas palavras de um membro do conselho. O BNDES desembolsa tão pouco atualmente que não faria sentido deixar parado o dinheiro no caixa da instituição. Até abril, o último dado disponível, o banco desembolsou 3,2 bilhões de reais, apenas 6% do total despendido em 2018. Dentro do órgão, é consenso que Levy era lento demais e que esse foi o principal motivo para o desgaste com Paulo Guedes. A demora em aprovar empréstimos também incomodava o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, e uma dezena de diretores e conselheiros do BNDES. O motivo declarado por Bolsonaro para forçar a demissão de Levy — a nomeação de um ex-secretário da gestão petista para um cargo de diretoria — foi apenas a gota d’água que fez o copo transbordar.
A ideia do governo é que Montezano, de 38 anos, consiga transformar o banco em um captador de recursos externos. Levy rechaçou a proposta de ir para fora para angariar recursos destinados à infraestrutura. Os juros dos empréstimos do BNDES, que hoje estão próximos de 7%, poderiam ar de 15% ao ano por causa do mecanismo tributário incidente no spread — a diferença entre a taxa paga pelo consumidor e a da captação. Caso, porém, a nova Previdência retire do banco os recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), não haverá muitas formas de financiar suas operações, uma vez que o Tesouro não tem dinheiro. Há medo dentro do BNDES sobre seu futuro. Para aumentar o clima adverso, algumas informações que chegaram sobre Montezano provocaram inquietação. Seu propalado gosto por baladas, a amizade que mantém com Eduardo e Flávio Bolsonaro e um processo por haver arrombado o próprio prédio não causaram boas impressões. Montezano, entretanto, já foi diretor e sócio do BTG Pactual e agradou a Guedes durante seus poucos meses no governo. Formado em engenharia pelo Instituto Militar, ele é mestre em economia pelo Ibmec, onde seu pai, Roberto Montezano, leciona. Currículo, como se vê, o jovem executivo tem. Resta acompanhar como vai se sair nas missões que Joaquim Levy não conseguiu cumprir.
Publicado em VEJA de 26 de junho de 2019, edição nº 2640

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