Como 120 das melhores escolas do Brasil se preparam para a volta às aulas 5w1d6z
Com os cuidados sanitários necessários garantidos, já está na hora de as instituições de ensino brasileiras tocarem a campainha e começarem a lição 2sg13

A pandemia não acabou, e seria irresponsabilidade acreditar que ela esteja chegando ao fim. Mas, ados nove meses deste ano diferente de todos os outros, o mundo começa a se abrir para uma vida relativamente normal, cumprindo um protocolo de segurança — máscaras, luvas, mãos lavadas, testes, distanciamento — fincado nos conhecimentos adquiridos ao longo da inédita convivência com o inimigo invisível e insidioso. À medida que contágio e mortes registram recuo constante, o comércio volta a funcionar, bares e restaurantes reabrem, serviços são reativados e, nos fins de semana deste inverno ensolarado, as praias se enchem de gente. Em meio à movimentação, uma atividade crucial permanece suspensa em quase todo o Brasil: o ensino presencial nas escolas. É compreensível que pais e mães se angustiem com os riscos da saída dos filhos do círculo familiar. Mas cada dia que um aluno a sem aprender estica sua defasagem de conhecimentos lá na frente, quando estiver construindo o futuro dele e do país. Sob esse ponto de vista, com os cuidados sanitários necessários garantidos, já está na hora de as escolas brasileiras tocarem a campainha e começarem a aula.

Em março, todos os 47,9 milhões de crianças matriculadas nas redes pública e privada do Brasil deixaram de ir ao colégio e entraram em um regime de ensino on-line reconhecidamente precário — sem falar nos 12% que não têm o à internet. Dois estados, Amazonas e Pará, liberaram a reabertura das escolas particulares em todos os municípios e outros cinco, incluindo São Paulo, em parte deles. Nos demais, é nítida a disposição dos colégios de pôr fim aos meses de portas fechadas. VEJA consultou 120 escolas particulares do país, classificadas entre as melhores, de acordo com o ranking do Enem, para conhecer seus planos de retomada. Delas, 10% já estavam em atividade e, entre as demais, a maioria absoluta — 77% — disse que só aguarda a liberação das autoridades para abrir as portas. Do total, 89% consideram essencial a presença das crianças na sala de aula. O Pueri Domus, onde estudam os gêmeos Gabriel e Maria Eduarda, de 13 anos, ainda não pode reabrir, e a mãe deles, a psicóloga Ana Paula Costa, lamenta. “Não considero este um ano perdido. O ensino remoto estimulou o amadurecimento e o senso de responsabilidade dos dois. Mas, em vez de um dia inteiro de atividade, hoje o máximo que fazem é andar de bicicleta no condomínio. O convívio com os amigos tem feito muita falta”, diz.
A retomada oficial depende das autoridades estaduais e municipais (veja artigo na pág. 65). Pois o que deveria ser uma decisão técnica, levando em conta o cenário epidemiológico da região, muitas vezes descamba para a vala comum das diferenças políticas, com confrontos entre governadores e prefeitos. A proximidade das eleições municipais não ajuda — os candidatos querem distância de medidas impopulares e do risco de escolas virarem focos de contágio. Algumas associações de professores também resistem à volta às aulas, alegando questões de segurança. As divergências costumam parar nos tribunais, alimentando uma guerra de liminares. O vaivém na Justiça propicia absurdos como o acontecido no Rio de Janeiro, onde, na primeira semana de setembro, os alunos pam a mochila nas costas, foram à escola um dia e acabou — aulas estão suspensas até segunda ordem.

Cada colégio que reabre deixa a critério dos pais aceitar ou não a volta às aulas dos filhos, e, por enquanto, a maior parte, compreensivelmente, se mostra temerosa. Em um levantamento realizado pela Associação Brasileira de Escolas Particulares com mais de 14 000 pais e responsáveis, 73% disseram preferir manter os filhos em casa, por medo da Covid-19. Já os filhos, quem diria, estão loucos para sair. A carioca Emanuele, 12 anos, aluna do Colégio Santa Terezinha, não vê a hora de voltar, mas sua mãe, Karla Ribeiro, diretora de uma ONG, é contra. “Se comigo, quando saímos, a Emanuele esquece os protocolos, toca em objetos e leva as mãos aos olhos e à boca, quem garante que isso não se repetirá no colégio? Enquanto não houver vacina ou remédio eficaz, ela vai estudar em casa, mesmo a contragosto”, afirma.
Embora esse tipo de preocupação seja recorrente, tanto a Organização Mundial da Saúde quanto o Unicef, que atende crianças, e a Unesco, que trata da cultura, recomendam que as escolas sejam reabertas até antes das demais atividades. Ainda que se tenha comprovado recentemente que sua capacidade de transmissão do vírus é igual à dos adultos, as crianças totalizam apenas 8,5% dos casos de Covid-19 no mundo. No Brasil, entre mais de 4,4 milhões de pessoas infectadas, só 8 332 têm menos de 19 anos. E, embora uma só carregue o peso de uma tragédia, as mortes foram raríssimas. “Quando as medidas sanitárias são respeitadas, o risco de contágio é infinitamente menor nas escolas do que em shoppings e bares”, afirma o infectopediatra Marcelo Otsuka. Em Fortaleza, onde a reabertura se deu no dia 8 de setembro, Michelle de Oliveira, 37 anos, sente enorme satisfação em levar Stella, 4 anos, e Beatriz, 2, para a pré-escola, de máscara e ando pelo ritual de higienização das mochilas. “No primeiro dia, chorei ao ver a felicidade das meninas por estarem naquele ambiente, gastando a energia acumulada durante a quarentena”, relata.

A chave, enquanto a vacina não vem, é manter os protocolos. Hospitais renomados como Sírio-Libanês e Einstein, em São Paulo, e a Rede D’Or, do Rio, foram contratados para dar consultoria sobre segurança sanitária a muitas das escolas ouvidas por VEJA. As recomendações vão do básico — higienização constante dos ambientes e das mãos, uso de máscaras, garrafas de água individuais e distanciamento de pelo menos 1 metro entre as carteiras — até mudanças que exigem esforço da comunidade escolar, como escalonamento no horário de entrada dos alunos, diminuição das turmas e formação de “bolhas” nas quais os estudantes convivem com um número de colegas. Também é preciso identificar integrantes de grupos de risco e disponibilizar testes para casos suspeitos. Havendo contágio, recomenda-se fechar por duas semanas.
Aos pais e alunos que não se sentem seguros em voltar, as escolas se dispõem a oferecer um ensino on-line de maior qualidade do que a improvisação que prevaleceu no isolamento social. No levantamento de VEJA, praticamente todas — 99% —, quando reabrirem, terão um sistema híbrido, com aulas presenciais e remotas. Em média, o plano é de que as escolas acolham apenas 30% dos alunos por vez, o que pode ajudar a tranquilizar os pais reticentes. “Abrir com pouca gente ajuda a quebrar um ciclo de inércia. Serve para testar as novas regras, os novos protocolos, e incentiva os outros, que vão perdendo o medo, no processo gradual que a situação exige”, diz Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV-RJ.

Entre os modelos pedagógicos a ser utilizados no ensino híbrido, um separa os alunos em duas turmas, a presencial e a remota, com horários e conteúdos diversos, o outro alterna aulas com e sem professor — nessas últimas, o aluno tem metas a cumprir. Também se contempla, para estudantes mais velhos, a transmissão simultânea das aulas em sala para a audiência remota, que poderão inclusive interagir com colegas e professores. Entusiasta do ensino digital, o professor de física Raphael Barbosa, 35 anos, do Colégio pH, do Rio, investiu 500 reais em equipamentos e montou um miniestúdio em casa para ensinar a distância. “Sei que a física não é a matéria preferida deles e me esforcei para tornar o conteúdo aprazível e interessante. Acho que consegui”, diz.
Os novos tempos vão continuar exigindo flexibilização. A volta às aulas terá, necessariamente, de ar por um encolhimento do currículo, dando prioridade às matérias essenciais para o avanço do aprendizado. Alguns conteúdos serão adiados para 2021 e acumulados com a programação normal. Cerca de 70% das instituições ouvidas por VEJA informaram que aplicarão testes para avaliar possíveis defasagens de aprendizado durante o período de ensino remoto, e 87% deixarão o aluno escolher se fará a prova em casa ou no colégio. Os testes remotos, explicam, serão mais dissertativos e espera-se que os pais colaborem, para impedir pesquisas e conversas via aplicativo.
Os especialistas advertem, no entanto, que mesmo para uma geração que nasceu conectada a redução do contato com a escola a uma tela de computador pode trazer dificuldades na hora da readaptação. “As crianças enfrentarão o desafio de recuperar o hábito do estudo, já que aram muito tempo com a rotina virada do avesso”, avalia o matemático americano Salman Khan, um dos mais famosos do mundo e cujas aulas virtuais são seguidas por milhões de estudantes ao redor do globo. A empresária Sania Dornelas, 42 anos, está preocupada com o rendimento escolar da filha Lorena, de 9, quando for a hora de rever a sala de aula. “Além de não assimilar novos conteúdos integralmente, ela desaprendeu alguns, como a tabuada”, diz. Moradora do Distrito Federal, onde as aulas presenciais continuam suspensas, Sania diz que nem sempre se sente capacitada para ajudar a filha nos trabalhos escolares. “A única forma de este não ser um ano perdido é a reabertura”, afirma.

Outro motivo de preocupação dos educadores, decorrente da interrupção do convívio e do isolamento, é a pequena familiaridade dos alunos com habilidades que as escolas modernas vêm se esforçando para desenvolver neles, como trabalhar em grupo, respeitar diferenças e tomar decisões. A equipe pedagógica terá também de saber lidar com manifestações de depressão e irritabilidade, potencializadas na quarentena. O caminho é gradual, mas precisa ser iniciado. A volta deverá ser feita em fases, sendo a primeira delas direcionada para uma espécie de despressurização. “O aluno precisa ser testado para saber quanto aprendeu de verdade e receber atendimento personalizado, de modo a entrar no ritmo que a quarentena comprometeu”, ressalta Claudia Costin.
O novo coronavírus provocou o fechamento de escolas em 190 países e afetou diretamente a rotina de 1,6 bilhão de estudantes, dos quais se estima que 24 milhões não voltarão aos bancos escolares. Além dos prejuízos em termos de conhecimento e dos danos à saúde das crianças confinadas, deixar de ir ao colégio também resultará em enorme impacto econômico. Um estudo da OCDE, a organização dos países mais desenvolvidos, calcula que a defasagem de aprendizado nos meses de isolamento social deve causar perdas da ordem de 1,5% do PIB mundial até o fim do século. “Devido ao atraso educacional, em um país como o Brasil pode haver diminuição de até 3% na renda que essa geração vai acumular ao longo da vida. Além de reabrir as escolas, é preciso acelerar a melhoria do ensino para reverter essa previsão”, frisa o físico alemão Andreas Schleicher, diretor da área de educação da OCDE.
Lá fora, esse processo tem sido vitorioso. Mais de trinta países já retomaram a rotina escolar com sucesso, mesmo tendo de cerrar os portões de novo, temporariamente, ao detectar casos de contaminação — na França, setenta das 3 600 escolas já aram por isso. A China, com a facilidade da obediência a ordens de cima que o sistema ditatorial impõe, recolocou neste mês mais de 100 milhões de alunos nos bancos escolares. Alemanha, Dinamarca e Coreia do Sul também estão com os colégios funcionando normalmente. “Um fator em comum na volta bem-sucedida é a presença de diretores capazes de envolver toda a comunidade escolar na tarefa de virar a página”, ressalta Schleicher. Enquanto o mundo avançado se mexe, o Brasil permanece empacado na faixa mais alta de dias sem escola, segundo a OCDE, deixando para trás o recorde de vinte semanas registrado durante a gripe espanhola, no início do século XX. Faz sentido prolongar isso até o ano que vem?
Colaboraram Matheus Deccache, Amanda Péchy, Paula Pacheco e Vinícius Novelli
Publicado em VEJA de 23 de setembro de 2020, edição nº 2705