Com Leão XIV, Igreja Católica reafirma a fé no caminho plural aberto por Francisco 324x64
De postura conciliadora e diplomática, o papa americano Robert Prevost tem perfil progressista semelhante ao do pontífice argentino b6n9

A comoção associada à expectativa pesava como chumbo no ar. Quando o cardeal francês Dominique Mamberti despontou na janela central da Basílica de São Pedro para ecoar a lendária frase em latim — “Annuntio vobis gaudium magnum: habemus papam” —, na tarde quente de quinta-feira, 8, fez-se espanto seguido de silêncio reverencioso, porque anunciava uma “grande alegria, temos papa”. Em seguida, depois da fórmula repetida como sermão, ouviu-se o “Eminentissimum ac Reverendissimum Dominum Sanctae Romanae Ecclesiae Cardinalem”, para então inserir o nome, também em latim, do ungido a Vigário de Cristo, o americano Robert Francis Prevost, “qui sibi nomem imposuit”, Leão XIV. Houve pranto da multidão aboletada na praça, de smartphones nas mãos. Alguns berravam, correndo com bandeiras de diversos países pelo piso romano. O sucessor de Francisco, entre a timidez e o susto, emocionado, disse então as primeiras palavras para a cidade de Roma e para o mundo. “Devemos buscar juntos como ser uma Igreja missionária, que constrói pontes de diálogo, sempre aberta a receber, como essa praça, a todos, a todos que precisam de nossa caridade, nossa presença, de diálogo de amor”, afirmou em italiano perfeito. “Convosco sou cristão e para vós sou bispo.”
Foi preciso algum tempo para que o pontífice Leão XIV se acostumasse aos segundos iniciais do novo santíssimo posto, agora diante do escrutínio de seu povo, calçado com as “sandálias do Pescador”. No futuro, os historiadores da religião, quem sabe, revelem o que se deu assim que os votos em maioria o fizeram sumidade no salão trancado da Capela Sistina, mas é certo que ele ou pela Sala das Lágrimas, uma pequena antecâmara dentro da sacristia, onde ocorrem os conclaves. De mobiliário mínimo (um cabideiro, uma cruz, algumas imagens marianas, um sofá vermelho e vestígios de afrescos nas paredes), o canto foi palco de eventos impressionantes. Foi ali que Angelo Roncalli, feito João XXIII em 1958, irrompeu em soluços ao ver a longa túnica sacerdotal. Ali Joseph Ratzinger, o papa Bento XVI, em 2005, usou a expressão “guilhotina” como metáfora do que lhe ocorrera ao ser designado. Ali Francisco, em 2013, disparou um brusco lamento — “o carnaval acabou, eu fico com o meu” — para o mestre de cerimônias pontifícias, recusando-se a usar os tradicionais sapatos vermelhos que simbolizam obediência do Servo dos Servos de Deus ao sangue derramado por Jesus. Não se sabe ainda qual foi a reação de Prevost, mas sem aquela travessia compulsória ele talvez ainda estivesse preso ao ado.

Conhecido como o “pastor de duas pátrias”, dado o tempo que dividiu entre Chicago, nos Estados Unidos, e a prelazia de Chiclayo, no Peru, Prevost, de 69 anos, foi nomeado por Francisco como prefeito do Dicastério para os Bispos em 2023, posição relevante, responsável pela seleção de religiosos na ponta da pirâmide do poder — daí a influência entre os que o escolheram como o papa de número 267. O longo serviço paroquial em território peruano permitiu tê-lo como candidato mais universal do que dos Estados Unidos, condição que amenizou os possíveis problemas associados à escolha de um pontífice de uma superpotência de maioria protestante, mesmo que ele não tenha ligação alguma com as ideias de Donald Trump. “É uma grande honra saber que ele é o primeiro papa americano”, limitou-se a dizer Trump. “Que emoção e que grande honra para o nosso país.”
De tom calmo, voz pausada, Prevost era uma espécie de braço direito do seu antecessor. Culto, como convém aos membros da Ordem dos Agostinianos, é homem cerebral, de profunda formação teológica. Agostinho de Hipona (354-430), o Santo Agostinho, estabeleceu uma “regra de vida em comunidade”, ancorada nos estudos científicos, na castidade e na pobreza. Para os agostinianos, fé e razão andam juntas. Nesse aspecto, o de contato com as exigências do mundo moderno, pode-se dizer que Leão XIV seja uma continuidade de Francisco. Em muitos temas, comungam de ideias — na defesa dos desvalidos, no respeito aos que se divorciaram, no cuidado com as mudanças climáticas provocadas pelo ser humano, até mesmo no incentivo à maior participação feminina na engrenagem istrativa da Igreja. Em um capítulo, contudo, haverá discrepância: Prevost não é aberto ao casamento de mesmo gênero. Em um discurso aos bispos, em 2012, lamentou que a imprensa ocidental e a cultura popular fomentassem “simpatia por crenças e práticas que estão em desacordo com o Evangelho” e citou textualmente o “estilo de vida homossexual” e “famílias alternativas compostas por parceiros do mesmo sexo e seus filhos adotivos” (leia abaixo).
Um outro modo de entendê-lo é ear pela decisão do nome. Ao escolher o título de Leão XIV, há evidente homenagem a Leão XIII, que foi Bispo de Roma de 1878 até 1903. Durante seu papado, o italiano Gioacchino Raffaele Luigi Pecci-Prosperi-Buzzi trabalhou para incentivar a atualização da Igreja com os humores da virada do século, em acelerado processo de industrialização. Afirmou, com insistência, que ciência e religião precisam coexistir. Abriu os arquivos da Santa Sé para pesquisa e sugeriu que se estudassem os textos de São Tomás de Aquino, que bebera de ninguém menos que Aristóteles.

Prevost, portanto, tem tudo para ser a força tranquila a encaminhar os os de Francisco. Há, contudo, na trajetória do americano, manchas que podem incomodar — e serão agora ainda mais iluminadas do que já foram. Entre 1999 e 2001 ele foi acusado de ser leniente com o episódio de um padre da Província Agostiniana de Chicago, acusado de abuso sexual de menores, cuja remoção aconteceria apenas em 2012. Despontou um segundo caso, envolvendo outros dois párocos, que teriam molestado três meninas — e, uma vez mais, houve quem pedisse do bispo mais celeridade para resolver os casos. É tema que, inevitavelmente, virá à tona, como indício de que a Igreja precisa ainda cutucar tabus que empurrou para debaixo do tapete, ao longo dos séculos — e que nem mesmo Francisco conseguiu cutucar.
A indicação de Leão XIV deve também ser iluminada a partir de uma perspectiva histórica. No primeiro conclave de 1978, havia dois caminhos desenhados. Uma estrada seria continuar a reforma iniciada pelo Concílio Vaticano II de João XXIII, no início dos anos 1960, com uma Igreja atenta ao rebanho, dita “pastoral”, de hierarquia menos rígida, com a abolição das missas em latim. De algum modo, Paulo VI, que o sucedera, manteve essa toada, ainda que angustiado e a contragosto. Outra trilha seria apostar no conservadorismo, declarando que o tempo de experimentação terminara em favor de um período de consolidação e retomada de posturas tradicionais. Depois de apenas dois dias e três votações, o fiapo de fumaça branca apresentou ao mundo um nome de meio-termo, conciliador, nem tanto ao mar, nem tanto à terra: Albino Luciani, patriarca de Veneza, que viria a ser chamado de João Paulo I — homenagem a seus dois predecessores.

O pontificado de Luciani duraria apenas 33 dias, um dos mais curtos de todos os tempos, depois de sua morte repentina, em decorrência de um ataque cardíaco, aos 65 anos. As teorias de conspiração — houve quem levantasse a hipótese de assassinato — nunca prosperaram, e aquele breve período do “papa sorriso” foi a marca de um rascunho de equilíbrio do colégio cardinalício, como agora com Leão XIV. Luciani seria o sumo pontífice adequado a novos tempos, em plena Guerra Fria, mas já com o início das fraturas que culminariam, em 1989, na queda do Muro de Berlim e, em seguida, no fim da União Soviética — missões ideológicas, por assim dizer, que couberam a João Paulo II, de linha relativamente dura, mas também afeito a manter a Igreja olhando para a frente, sem recuos que a afastariam das necessidades do novo tempo, de janelas abertas, globalizado.
Pode-se, enfim, comparar a eleição de Leão XIV, no que tem de calma, à de João Paulo I — mas espera-se, por óbvio, que seja mais duradoura. Robert Francis terá agora uma missão complexa: manter os avanços de Francisco sem ofender as alas reacionárias, avessas às chacoalhadas impostas pelo cotidiano da sociedade e sem as quais a Igreja tende a minguar, em movimento inexorável. “Um dos primeiros desafios do novo papa será encontrar o equilíbrio adequado entre a doutrina e a sensibilidade pastoral”, diz Darius Sporzynski, pesquisador da Universidade Católica Australiana, especialista em catolicismo e história medieval. De 2022 a 2023, a rigor, houve ligeiro aumento do número de fiéis católicos, que ou de 1,39 bilhão em todo o mundo para 1,4 bilhão. A maior expansão foi na África, com crescimento de 3%. É pouco. No Brasil, a evasão católica é uma evidência. Em 1980, os católicos representavam 89% da população que itia ter alguma crença, ante 7% dos evangélicos. Hoje, são 50% da população — as vertentes protestantes chegam a 31%. Em 2032, a manter-se o ritmo de perdas e danos, de ganhos e conquistas, os evangélicos serão maioria, em projeção do demógrafo Eustáquio Alves. “As igrejas católicas tendem a concentrar seus ofícios religiosos em uma paróquia, o que em cidades pequenas pode significar um único e modesto templo”, diz Victor Gama, historiador da religião da PUC de Minas Gerais. “Nos meios evangélicos, há maior diluição e presença, criando um sentimento de comunidade maior e disseminador de ideias.”
Leão XIV sabe ter uma montanha para subir. Não terá como mexer nos dogmas católicos, por representar anátema, e não seria mesmo possível cutucá-los. Ele certamente manterá o tom modernizador de Francisco, em um cotidiano embebido da velocidade das redes sociais, para o bem e para o mal. Provocará discussões, muitos o defenderão. Será criticado, e com tudo isso a vida seguirá. Mas só haverá real oxigênio para a Igreja — ao menos do ponto de vista da sobrevivência do catolicismo — se conseguir mexer com a compulsória e urgente necessidade de abertura, ao romper a rigidez de estruturas antiquíssimas e carrancudas, imexíveis porque burocráticas.
Essa questão tem um nome: colegialidade, em serviço que Francisco não conseguiu finalizar, premido pela permanente briga interna da Santa Sé. “O termo vem da palavra colégio, que é muito próxima da palavra colega”, escreveu o vaticanista americano John L. Allen Jr., autor de Conclave, pequeno clássico lançado pouco antes da morte de João Paulo II. A colegialidade surgiu com força nos debates do Vaticano II sobre o relacionamento que deveria existir entre o papa, a Cúria Romana e os bispos do mundo. Se esse relacionamento fosse colegial, os bispos, e por intermédio deles o povo de suas igrejas locais, deveriam envolver-se na determinação de políticas — primeiramente em suas próprias instituições e depois até na Igreja Católica Universal. Em poucas palavras, a colegialidade é um código que significa tirar o poder da hierarquia engessada e permitir que os bispos sejam bispos, algo que está na espinha dorsal da carreira de Prevost, um homem de dois mundos.

A colegialidade envolve também outro conceito que circulou muito no período de João XXIII: subsidiariedade, palavrinha feia, mas de fácil tradução. É noção adotada em muitas empresas modernas: decisões que podem ser tomadas em nível mais baixo não deveriam ser readas para um nível mais alto, para pessoas que sabem menos sobre a situação local. No mínimo, a colegialidade exige uma tomada de decisões com maior colaboração dentro da Igreja. “Isso não faria da Igreja uma democracia, mas a deixaria mais democrática”, diz Allen Jr. O ex-cardeal Prevost pode seguir como lema uma das máximas de Santo Agostinho e com ela costurar seu pontificado: “Prefiro os que me criticam, porque me corrigem, aos que me elogiam, porque me corrompem”.
As ideias de Prevost 651hx
Frases do pontífice sobre temas que acendem a polêmica dentro da Igreja e suas considerações sobre o mundo de hoje ajudam a entender a cabeça do novo ocupante do trono de Pedro

Liderança
“O bispo não deve ser um pequeno príncipe sentado em seu reino, mas ser chamado autenticamente a ser humilde, a estar próximo das pessoas a quem serve e caminhar com elas”
Rumos da igreja
“Queremos ser uma instituição sinodal, que avança, que busca sempre a caridade, sempre estar próxima, principalmente daqueles que sofrem”
Presença das mulheres
“Ordená-las não resolve necessariamente os problemas da Igreja, podendo até criar um novo. Acredito, porém, que haverá um reconhecimento contínuo de que elas podem acrescentar muito em diferentes níveis”
Abusos sexuais do clero
“Devemos ser transparentes e honestos, acompanhar e ajudar as vítimas. Caso contrário, suas feridas jamais cicatrizarão. Há uma grande responsabilidade nisso para todos nós”
Comunidade LGBTQIA+
“A simpatia por escolhas de estilos de vida anticristãos que a mídia de massa promove é tão brilhante que, quando as pessoas ouvem a mensagem cristã, ela parece cruel”
Identidade de gênero
“A promoção dessa ideologia é confusa porque busca criar gêneros que não existem”
Meio ambiente
“O domínio sobre a natureza não deve se tornar tirânico. Essa deve ser uma relação de reciprocidade”
Polarização
“Esse se tornou o modus operandi de uma sociedade que, em vez de buscar a unidade como princípio fundamental, vai de extremo a extremo. As ideologias adquiriram maior poder do que a experiência real da humanidade, da fé, dos valores concretos pelos quais vivemos”
Paz
“O mundo precisa de pontes com diálogo, com encontros, unindo-nos todos para ser um povo em paz”
Colaborou Paula Freitas
Publicado em VEJA de 9 de maio de 2025, edição nº 2943